Primeiras Impressões | Sob o Domínio do Rei ou da literatura?

Cristina Ravela
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Depois de muito tempo, eis que mais um tópico do Primeiras Impressões paira sobre vocês. Desta vez, é sobre a novela Sob o Domínio do Rei, de Gildo Lima, e que estreou no último dia 23.



A novela, que já foi série, conta a estória de Jean (Jesuíta Barbosa) que viaja a São Paulo atrás de uma vida melhor, mas o que encontra é o seu lado mais obscuro do seu ser. Jean conhece Carlos Cassel (Paulo Leal), um cara que anda metido com gente da pior espécie e que acaba envolvendo o protagonista. Jean foge para Cuiabá e o seu instinto assassino aflora em um ambiente onde matar, morrer, enganar e corromper é a lei da vida.

Bom, depois dessa sinopse mais matadora que Paulo Leal (que fez Maurício Coelho, amigo dos velhos tempos do Orkut ressuscitar), vamos para a review — matadora ou do tipo "relaxa o core"?



Sob o Domínio do Rei traz uma estória interessante, perigosa e sedutora, onde um sujeito que quer mudar de vida, acaba descobrindo seu lado podre. Porém, alguns detalhes melhor trabalhados fariam uma boa diferença no andamento do roteiro. Vejamos alguns deles:

Recursos literários no roteiro

O autor disse gostar muito de misturar roteiro e literatura, de escrever conforme imagina a cena. Acho louvável, mas nem tudo é pertinente. Um assunto que permeia o MV e já foi tema de muitas reviews por aqui é o uso de recursos literários no roteiro.

Como roteiro é um aprendizado constante, visto suas mudanças de técnicas e novas formas de descrever determinadas cenas para fluir melhor, o uso da literatura (dependendo) pode fazer parte do script. Porém, tudo depende de qual.

  • Roteiro ainda se escreve na terceira pessoa (a menos que a trama permita um narrador) e com verbos no presente. 
  • Roteiro ainda exige cabeçalho para cada cena. 
  • Roteiro ainda pede rubricas e um bom desenvolvimento. 

Mas o que faltou em Sob o Domínio do Rei?

"Ritinha, sente talvez, a maior dor que já sentira em toda sua vida. [...] Caindo no chão como uma fruta madura"

O trecho acima é uma literatura descarada, afinal, é na literatura que escrevemos os sentimentos; no roteiro, mostramos.

Ex.: Ritinha não se conforma; respira fundo, segurando as lágrimas que já rolam pela face.

O trecho acima seria uma versão do trecho do autor, utilizando-se do recurso literário destacado. Isto porque, no roteiro seco (inclusive os que eu já havia mencionado tempos atrás) a cena seria:

Ex.: Ritinha respira fundo, segurando as lágrimas. [...] Caindo no chão, desmaiada. (bem chato, verdade)

Falarei mais sobre como usar recursos literários no roteiro em outra postagem.

Má formatação

Já falei que roteiro ainda exige cabeçalho? Mas um cabeçalho correto, para que possamos entender a cena seguinte. Na novela de Gildo Lima, o que incomodou foi a disposição dos cabeçalhos, acompanhe:

"A NOITE PAULISTANA / NOITE 
São Paulo não dorme. Aqui tem de tudo, baladas, restaurantes, casas de shows, drogas, meninas, meninos, trans… Mas se você está a fim de tudo isso numa só noite “Hot Hot 33” é o seu lugar. 
Carlos, visivelmente sob o efeito de cocaína, empurra algum dinheiro sobre o balcão. Silas, segura sua mão:"

Em primeiro lugar, o cabeçalho é uma localidade, mas uma localidade física (CASA DE FULANO, HOSPITAL, DELEGACIA...). No caso acima, o autor quis mostrar os TAKES da cidade. Poderia ter aberto o cabeçalho como RUAS DA CIDADE / NOITE ou simplesmente cortar para o TAKES.

Portanto, usar NA ESCOLA PRIMÁRIA / DIA não é um cabeçalho aceitável. No caso, seria INT. (OU EXT.) ESCOLA PRIMÁRIA / DIA. Onde INT. indica INTERIOR e EXT. indica EXTERIOR.

O que se segue é uma narração do autor, pouco habitual no roteiro, uma apresentação como faríamos em um argumento ou em uma pre estreia. Vamos ver duas cenas de novelas do MV e como os autores descrevem cenas semelhantes:

"CENA 20. ITÁLIA. FLORENÇA. EXTERIOR. NOITE 
SONOPLASTIA: “BELIEVER” – IMAGINE DRAGONS 
TAKES noturnos da belíssima cidade de Florença. Principais pontos turísticos são
destacados. Takes da parte central da cidade. Um restaurante chiquérrimo é
destacado entre os demais."
(Maçã do Amor - Último capítulo, Ramon Fernandes / TVN)
--
"CENA 06. SÃO CAETANO. GERAIS. EXTERIOR. DIA. 
SOBE SONOPLASTIA: TRANSA LOUCA – MC TROIA. IMAGENS CLIPADAS DO
BAIRRO. MOVIMENTAÇÃO. PASTÉIS FRITANDO, ACARAJÉS NO TACHO DE
DENDÊ, ESTUDANTES, SENHORAS, ÔNIBUS INDO E VINDO." (Inimigo Íntimo - Cap 19, Rynaldo Nascimento / UP)

Roteiro não é você dizer o que o lugar tem; é você mostrar. Os takes da cidade precisam ser rápidos, traduzir o ambiente para o leitor antes de levá-lo para a cena seguinte.

Já a parte do Carlos sob o efeito da cocaína, foi ótimo. Cocaína rolando solta alí. Tudo bicarbonato de sódio, tá gente? É tudo brincadeirinha, calma.



"Jean, pega um papel da mochila e se aproxima de um senhor da equipe
de limpeza do terminal para pedir informações:"

Mais uma vez, o uso da literatura faz-se presente, sem necessidade, pois vira excesso. Se retirar o trecho destacado, a frase não perderá sentido, mas fará mais sentido para a cena, uma vez que o cabeçalho já deixa claro que alí é um terminal e que, se Jean se aproximou de um senhor, logo ele tomaria alguma atitude, que descobriríamos pelo diálogo.

O enredo de Sob o Domínio do Rei

O enredo mostra as reações dos personagens, as ações que elem executam, tudo precisa estar em harmonia, afinal, se a garota chora copiosamente a morte do ente querido, não pode ela se acabar numa balada à noite. A menos que ela seja psicopata, do contrário estaríamos diante de um furo de roteiro.


Pois bem, no enredo de Sob o Domínio do Rei vimos Jean sair de Arraial do Cabo → Ritinha e dona Ivone quase morrendo de saudades → Carlos Cassel fazendo um escarcéu na boate Hot Hot 33 → Jean chegando → Jean e Carlos se conhecendo → Os bandidões invadindo a Hot atrás de Carlos → Fera, um dos bandidões, tramando contra Carlos → Carlos contando sua história para Jean → Jean se apresentando à boate e recebendo uma dica para ganhar mais money.

Não vi grandes problemas no desenrolar desse enredo, claro que explorar mais as cenas seria bacana, mas eu disse que não vi GRANDES problemas, mas vi algum. Encontrei um furo de roteiro (o que também gera problemas em todo o enredo): Carlos Cassel, pela imagem divulgada, parece um cara safo, metido com drogas, dono de si. Porém, o autor faz dele um mimado que queria, mas não pode contar com a grana dos pais.

Bem, nenhum personagem ganhou caracterização, então a gente precisa contar com o que foi mostrado nas imagens. A ação e fala do personagem precisam coincidir com a caracterização do personagem para que haja verossimilhança.

Os diálogos, em partes, não eram o ponto forte da trama, mas sim, a trama em sua totalidade. Ou seja, a trama que envolvia Jean e Carlos tem potencial para seguir adiante, mas os pontos que o cercam podiam ser melhorados.

Alguns problemas de português não passaram despercebidos. Problemas com vírgulas e grafia foram comuns.

No mais, Sob o Domínio do Rei tem uma boa estória, uma boa pegada, mas peca na execução de algumas cenas. Não é o melhor roteiro que já li, mas também não é o pior. Essa foi a primeira impressão de Sob o Domínio do Rei. Não deixa de comentar aqui ou no grupo do Facebook.


NOTA: 3.3 (em uma escala de 1 a 5)


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