Conto III: Na Cabeça do Gigante - Parte II
Sobre a obra: A antologia "Era Uma Vez" nasceu de um desejo em contar histórias simples, mas que pudessem ser deslumbrantes.
Onde as possibilidades fossem infinitas e as aventuras fantásticas. Um anseio do autor em viajar e fugir um pouco da triste realidade que se vive no país.
Essas histórias não são meios de escape ou uma forma de ignorar os problemas, mas um modo de resinificar os medos, os traumas e os monstros internos que nos assolam.
Era uma vez é um convite à imaginação. Para dar asas à imaginação. É mais uma maneira de sonhar e manter os pés no chão, mas nunca deixar de sonhar. Sejam bem-vindos à Antologia Era Uma Vez.
Índice:
I - A Menina e o Jardineiro
II - Mundo Perdido
III - Na cabeça do Gigante
IV - O Grande Vilão
Na Cabeça do Gigante - Parte II
“O
que ele quis dizer com amputado?”, pensou o menino. “Enfim, não podia mais
perder tempo”, continuou sua jornada escalando a parede e pendurando-se nas
alças. As primeiras foram fáceis, uma após outra, e o teto parecia alongar-se
cada vez mais. No meio do lago, seus braços começaram a doer, a mochila pesava
e o cansaço tomava-lhe por inteiro. Precisava ser forte. Não queria morrer ali.
Continuou. Agarrando uma alça e soltando a outra. Parou. Sentiu um toque no
tênis. Olhou para baixo e um grito mudo lhe tomou de assalto. As piranhas
pululavam de boca aberta, tentando abocanhar os seus pés. Desesperou-se. Soltou
uma mão e alça da mochila despencou. Não poderia perder suas coisas. Tudo
estava ali. O mapa, a água, a comida e o facão. Não poderia perder sua mochila.
Mas, ela pesava, e se não fizesse algo perderia seus pés, ou cairia no lago de
ácido borbulhante.
Encolheu
suas pernas e apoiou as duas mãos novamente. Prosseguiu mais alguns metros e
parou. Estava exausto. Não conseguiria ir adiante, tinha que fazer algo. Soltou
a mochila e observou suas coisas caírem a afundarem no lago. Estava mais leve.
Quando intentou segurar a próxima alça, sentiu dentes afiados abocanharem os
seus pés e arrancarem-no de si. Um ardor subiu dos cotocos até a cabeça.
Segurou com mais força as alças. Não podia morrer. Prosseguiu ainda mais rápido
desejando chegar do outro lado. Desabou no chão de musgos, sentindo muita dor.
Sua mochila ainda boiava sendo estraçalhada pelo ácido. Seus pés viraram jantar
de piranha. Estava esgotado.
Lembrou-se
do conselho do morcego, e esfregou musgo nos pés arrancados. Não conseguia
pensar em nada. “Espero que o sangramento pare”, disse, antes de desmaiar.
Acordou
assustado. Uma gota pingava insistente em sua cabeça. Sentiu algo no bolso e
tirou uma lanterna de lá. Era a única coisa que carregava, perdera tudo. “Sem
mapa, como continuaria? E seus pés?”. Olhou e não sentiu mais sangrar. Havia
estancado. “Mas, como andaria? Se arrastando? Será que valia mesmo apena
continuar? Tudo isso pra conquistar fama e riquezas. Será que valia mesmo
apenas?”, pensava.
Não
demorou muito e um pato com passos curtos e bico achatado, se aproximou dele.
Parecia irritado e muito apressado. “Anda, venha depressa. Não tenho tempo a
perder com aventureiros”, gritava o pato. “Para onde ir?”, Zule perguntava.
“Siga-me
sem mais perguntas”, o pato dizia, com uma voz anasalada e entediada.
Tudo
era muito estranho, mas não havia tempo a perder. Arrastou-se pelo musgo atrás
do pato e chegou diante de um armário aberto. “Escolha um e suma”, dizia o
pato, mostrando fileiras de pés de pato arrumadas nas prateleiras do armário.
“O
que é isso?”, Zule perguntou.
“Um
favor!”, o pato respondeu. “Geralmente eu cobro, mas meu amigo morcego pediu
que eu lhe ajudasse”.
Observou
os pés de pato e não acreditou no que estava acontecendo. Queria ter os seus
próprios pés, não aqueles. Mas não podia rejeitar a oferta. Talvez fosse a
única coisa que não pudesse recusar. Como iria andar, sem os pés?
Apontou
para os primeiros da fila. Viu o pato retirar o par de pés e enroscar nos
cotocos. Sentiu quando os pés acoplaram-se aos seus. Ficou em pé e deu alguns
passos. Desequilibrou-se no início, mas depois, abrindo bem as pernas, caminhou
normalmente, parecendo um pato.
“Vá
e não volte mais. Não entendo porque entram aqui. Espero nunca mais cruzar seu
caminho”, disse o pato, trancando o armário e sumindo entre a relva cerebral.
“Espera,
diga-me a direção para o fruto”, Zule gritou, mas já era tarde. O pato
desaparecera. Teria que ir sem rumo. Sem saber o caminho.
O
ar ali era denso e opressor. A massa encefálica cinza formava um muro alto que
estreitava o caminho. Não sabia para onde estava indo, e não poderia ficar perdido
na cabeça do gigante. Mas, sem um mapa ele não tinha como prosseguir. “Onde
está o morcego para me ajudar?”, perguntou-se.
Um
buraco se abriu no chão e o engoliu. Caiu em uma geleia grudenta que o
imobilizava. Ao redor, dezenas de esqueletos afogados na gosma escura. “Que
diabos era aquilo? Caíra em uma armadilha?”. Como uma areia movediça, a gosma
nojenta ia lhe sugando cada vez mais. Morreria afogado se não saísse
imediatamente. “Mas que merda, primeiro perdi minha mochila, depois meus pés, e
agora morrendo afogado em um poço fedorento. O que mais poderia acontecer?”.
Uma
sombra cobriu o poço, assustando-o. Olhou para o alto e uma figura aterradora
tomou forma. Uma tarântula gigante, com milhares de braços humanos lhe encarava
silenciosa. Seus olhos xadrezes esverdeados analisavam-no por completo. “Isso
não é um bom sinal”, pensou o menino.
A
aranha era pesada apoiando os braços humanos no chão. Braços negros, brancos,
finos ou grossos, todos saiam da criatura e lhe serviam de pernas. Ela desceu o
buraco se aproximando de Zule. Segurou sua cabeça com algumas mãos sujas. Tentou
arrancá-la, mas parou ao ver uma lágrima caindo dos olhos dele.
“Não
irei matá-lo. Mas, quero algo seu”, disse a aranha, com uma voz musical que
ecoava sensualidade.
“Não
tenho nada de valor”, Zule respondeu, com a voz trêmula.
“Engano
seu”, ela disse sorrindo e mostrando as garras bucais. “Dê-me seus braços, e
lhe tirarei daqui. Pelo contrário fique com eles e morra como os outros à sua
volta”.
“Não
posso fazer isso. Como viverei sem meus braços?”.
“Quando
comer o fruto dos deuses, terá quantos braços quiser”, argumentou a aranha.
Zule
percebeu que afundava cada vez mais. Quando tentava sair e agarrar-se na parede
lamacenta, sentia seu corpo descendo na gosma escura. Uma agonia tomou de
conta. Coração acelerado, respiração ofegante, estava em desespero. Não queria
morrer afogado, mas também não queria perder os seus braços. Já não tinha os
pés, e agora os braços? Como sairia da cabeça do gigante sem as mãos?
“Não
irei perguntar novamente, irás me dar os braços, ou prefere morrer afogado?”, a
tarântula insistia.
O
tempo estava esgotando. A gosma cobria sua cintura. Em poucos minutos estaria
submerso. Não via outra opção se não ceder à proposta da tarântula. Iria
aceitar perder seus braços, para sobreviver. Gritou dizendo que sim. Fechou os
olhos tentando não pensar na dor.
“Levante
os braços”, ordenou a aranha. Zule obedeceu, e ela puxou-lhe da gosma
tirando-lhe do buraco. Em seguida mordeu-lhe o pescoço fazendo-lhe desmaiar.
Para depois, arrancar-lhe os dois braços e acoplá-los em si. Antes de partir,
estancou a sangria com os musgos e deixou o menino adormecido.
Zule
acordou esgotado. Parecia que haviam arrancado sua alma. Mesmo cambaleando, caminhou
alguns metros, com seus pés de pato. Estava desolado. Sem braços, precisava do
fruto. Não queria passar o resto da vida sem manipular as coisas. Queria seus
braços de volta.
Caminhou
durante horas, com fome, sede e frio. No meio do labirinto cerebral, cercado
por muros de massa cinzenta, desmaiou. Foi despertado por uma voz infantil. Uma
menina gritava muito alto. “Acorda! Você não pode morrer!”.
Despertou
sobressaltado. Da parede esbranquiçada um rosto infantil desgrudava-se tentando
sair dali de dentro. “Se respirar este ar por muito tempo irás morrer
intoxicado. Precisa continuar”, disse a menina.
“Quem
é você”, Zule perguntou curioso.
“Uma
aventureira assim como você que não conseguiu comer do fruto. Estou presa aqui,
ninguém pode me tirar. Mas, isso não me impede de ajudar outros idiotas que
passam por aqui”, ela disse.
“Diga-me
como chegar ao centro do cérebro?”, perguntou cansado.
“Antes
de chegar ao fruto, deves conhecer o senhor molusco. Ele vai te ajudar com os ‘braços’”.
A
garota indicou o caminho para chegar ao molusco. Disse que ele saberia a rota
para o fruto.
Caminhando
como um pato, Zule chegou ao oceano nervoso. Desequilibrava-se algumas vezes,
mas conseguiu permanecer de pé a maior parte do tempo. Encontrou o senhor
molusco trabalhando com discos. Ele era
DJ nas horas vagas. Pediu que lhe ajudasse mostrando que estava sem braços. O
molusco trouxe-lhe dois tentáculos e acoplou-os ao corpo do menino. Agora sim,
Zule podia continuar. Os tentáculos não eram como os seus braços, mas lhe
serviriam temporariamente.
E
assim Zule continuou em busca do fruto dos deuses. Com pés de pato e tentáculos
de molusco, ele era um retalho ambulante e assustador. Caminhou para o norte
até o salão das máscaras, e ao entrar no ambiente, o portão fechou-se atrás
dele.
O
lugar era gigantesco. Um grande retângulo, cheio de escadas e máscaras de
rostos humanos em exposição. Milhares de pessoas andavam por ali, todas vieram
atrás do fruto, mas agora se encontravam presas naquele salão. Rostos tristes e
sem esperança.
Zule
chamou atenção de um homem alto que passava por perto. “Diga-me senhor, como
chegar ao fruto?”
“Não
é possível chegar ao fruto. Fomos tragados para uma grande armadilha”,
respondeu o homem desconsolado.
Mas
Zule não podia acreditar que era o fim. “Deve ter uma saída. Algo a se fazer”,
pensava.
“Aquele
é o único caminho”, disse o homem apontando para uma porta vermelha no lado
oposto da sala. “Se a mulher do espelho reconhecer seu rosto, poderás passar em
paz. Do contrário terás o pescoço arrancado”.
Aquilo
deixara o menino curioso. O que fazer para passar pela porta? Zule precisava
arrancar seu rosto e vestir uma máscara.
“Existem
bilhões de máscaras neste salão, mas somente uma poderá ser reconhecida pelo
espelho, somente uma. Antes eram nove agora só resta uma. A última máscara do
último guardião”, explicou o homem.
Precisava
vestir um novo rosto e caso fosse do último guardião, estaria a salvo e poderia
continuar a jornada. Era um desafio enorme e muito difícil de ultrapassar. Como
achar uma máscara específica em meio a bilhões de máscaras? E, seu rosto, sua
imagem, como que ficaria a partir de agora?
Pensou
em voltar, mas não encontrou nenhuma saída. Estava trancado com os outros.
Esbarrou em milhares de pessoas. Teve fome e sede. Observou homens, mulheres e
crianças arrancarem seu próprio rosto, vestir uma máscara com o rosto de outra
pessoa, e caminharem até a porta vermelha.
Antes
da porta, havia uma guilhotina. Quando alguém se aproximava, a lâmina da
guilhotina subia, revelando o fio da navalha cortante. O viajante apoiava o pescoço
na barra, imobilizando a cabeça; logo em seguida, olhava para um espelho
adiante. Se a mulher no espelho sorrisse, a porta se abriria e o candidato
poderia continuar. Caso contrário, se a mulher ficasse irada, a navalha cairia,
seccionando o pescoço da vítima.
Uma
atrás da outra, as pessoas trocavam de rosto, ajoelhavam-se diante da
guilhotina e perdiam o pescoço. Qual a chance de achar uma máscara entre
bilhões? Somente uma pessoa entraria! Qual a chance de Zule? Ele seria
decapitado, com certeza! Fim da história, não havia mais o que fazer.
Durante
meses, o menino andou de um lado para o outro, em conflito. Alimentou-se mal, e
estava desidratado. “Já estou morto. Tenho que arriscar”, pensava.
Subiu
no último andar do salão e procurou um rosto para si. Sempre desejou ter olhos
azuis e nariz afilado, pelo menos isso iria realizar. Arrancou seu rosto e com
muita dor, colou a nova face. Olhou seu reflexo num pequeno espelho, e gostou
do que viu. Estava bonito. Agora iria enfrentar a guilhotina. Morreria com
olhos azuis.
Aguardou
duas mulheres à sua frente. Foram decapitadas. Esperou a lâmina, ainda suja de
sangue, levantar. Apoiou o pescoço na barra e sentiu quando ficou preso. Um
filme passou em sua cabeça. Pensou nos pais, nos irmãos, na sua casa. Nos
natais, nos aniversários, e nas brigas. “Irei morrer sozinho”. Tentou sair
dali, mas não conseguia. Gritou pedindo socorro, mas ninguém poderia ajuda-lo.
Fechou os olhos para não ver o espelho, mas a mulher refletiu sua imagem. Era
tarde demais. Estava a um fio da navalha. Podia escutar a lâmina descer furiosa
e partir o seu pescoço ao meio. Podia imaginar sua cabeça quicando e sendo
jogada no fogo. Não queria morrer daquele jeito.
Abriu
os olhos e viu a imagem da mulher no espelho. Um rosto doce e angelical.
Sorriu, e esperou a morte.
Mas
a mulher retribuiu o sorriso, e uma luz ofuscou o salão inteiro, abrindo a
porta vermelha. Zule levantou-se e caminhou em direção ao portal. Não olhou
para trás, estava a salvo. Um grande alívio pousou em seu coração. Respirou
profundamente e fechou os olhos. Fora escolhido para comer o fruto. Nada
poderia lhe parar. Era um verdadeiro herói.
Estava
pronto para comer a glória. Depois de tudo que enfrentara nada mais poderia lhe
deter. Sendo provado e aprovado em todos os desafios, sentia que estava
destinado a ser grande e adorado. Uma sensação de triunfo lhe preencheu.
Sentia-se ótimo.
Uma
mulher mística com vestes brilhantes voou até Zule. “Siga adiante e encontrará o
fruto”, ela disse. Em seguida, partiu, deixando uma luva cintilante com ele.
“Pra que serve isso?”, perguntou-se.
Desceu
alguns degraus até entrar em um oráculo mágico. O lugar era um ovo gigante com
um pedestal no meio. Em cima do pedestal, uma esfera vermelha cintilante, pulsava.
O fruto dos deuses lembrava uma uva encrustada de rubis, e ao redor da uva, um
fogo ardente lhe envolvia.
Então
era verdade; o fruto existia; estava ali diante dele. Era o momento mais
esperado em toda sua vida. Comeria e tudo se transformaria. Glória, poder e
grandiosidade. Todos se curvariam diante da beleza e superioridade de Zule, o
grande.
Ao
se aproximar do pedestal, sentiu o calor do fogo envolvente. Pôs as luvas
cintilantes, na ponta dos tentáculos, e tomou o fruto em suas novas mãos. Foi
tomado por uma grande emoção. Pela primeira vez em toda sua vida, conseguira
conquistar alguma coisa relevante.
Assustou-se
quando a mulher mística materializou-se diante de si. “Seja grande e poderoso”,
ela disse. “Não podes comer o fruto dentro do gigante”, alertou antes de sumir,
como uma estrela cadente.
Sem
que Zule percebesse, um homem sem rosto observava tudo o que acontecia no
óraculo. Atrás de portas entre abertas, ele espiava Zule caminhar com o fruto
até o corredor da liberdade.
Antes
do corredor que dava acesso ao exterior do gigante, havia um saguão no meio. E,
no centro, uma mesa comprida recheada de comida. Zule observou as coxas de
frango, os peixes assados, os pães suculentos, as maças e uvas brilhantes, as
taças de vinho. Estava faminto, não poderia resistir a essa oferta. Afinal,
havia conquistado seu prêmio, aquilo era sua recompensa.
Sentou-se
diante do banquete e saciou sua fome e sede. Comeu muito, mas muito mesmo.
Ficou pesado de tanto comer. Teve sono. Tirou as luvas e apoiou o fruto dos
deuses na mesa, perto de si. Dormiu.
Abriu
os olhos lentamente. O sono ainda pesava em sua cabeça. Não tinha noção do
quanto estava cansado. Esticou os tentáculo e as pernas com os pés de pato.
Estava renovado. Nada melhor do que uma boa refeição e um ótimo cochilo. Olhou
ao redor e viu toda a bagunça que fizera. Resto de carne, copos sujos e frutas
pelo chão. Voltou a olhar para a mesa e se deu conta de que o fruto dos deuses
havia sumido. Entrou em desespero. Onde estava? Tinha deixado em cima da mesa
perto de si! Como sumira assim?
Ouviu
alguns passos atrás de si. Olhou de relance e percebeu uma sombra passando
entre caixotes abandonados. “Quem tá aí?”, perguntou com a voz trêmula. Correu
em direção ao barulho e viu um homem atarracado segurando o fruto nas mãos.
“Devolva meu fruto, seu ladrão de uma figa”, gritou, perseguindo a figura
estranha.
Correram
em direção ao corredor da liberdade. Zule não iria deixar que ninguém roubasse
aquilo que tanto lutou para conquistar. Mataria se preciso fosse pra ter o
fruto novamente.
Esticou
seu tentáculo e derrubou a figura estranha. O homem puxou uma faca e cortou a
ponta do tentáculo. Zule soltou um grito de dor que ecoou por todo o ambiente.
Entraram
em luta corporal. O menino tinha a mesma altura do homem, mas seus pés não
ajudavam, e ele se tornava lento. Zule agarrou-se com o fruto e correu em
direção à saída. Uma serpente gigante se aproximava dos dois forasteiros,
pronta para dar o bote. Estavam encurralados. Precisavam sair o mais rápido
possível.
No
fim do corredor, viram uma luz irradiar. O problema é que sapos, grudados nas
paredes, cuspiam uma gosma grudenta que imobilizava os pés dos dois
perseguidos. Enquanto isso, a serpente se arrastava ligeira com a boca aberta
pronta para engolir suas vítimas. Com muito esforço, Zule conseguiu se livrar
da gosma e continuou até chegar à porta de saída. Olhou para trás, e viu o
homem se debatendo para se livrar daquilo. “Ajude-me, por favor, me tira
daqui”, ele gritava em desespero. Ainda pensou em voltar, mas se retornasse
seria engolido pela serpente. Não conseguiria se desgrudar daquela cola. Não
podia perder sua vida. Infelizmente teria que partir sem o homem atarracado.
Deu
as costas e saiu do corredor. Sentiu o calor vindo dos raios solares. Escutou o
grito apavorado do homem sendo devorado pela serpente. Não havia mais o que
fazer, ou ele ou os dois iriam morrer. Não podia se sentir culpado. Não havia
mais lugar para a culpa em sua vida. Estava livre de qualquer coisa que lhe
colocasse para baixo. Não aceitaria mais esse tipo de sentimento. Seria grande.
Estava
no topo da cabeça do gigante, e uma escada de cordas surgiu do interior do
cérebro. Desceu com alguma dificuldade, pois os pés de pato e os tentáculos não
ajudavam, precisava livrar-se daquilo.
Observou
o fruto diante de si e preparou-se para comer. Com os olhos fechados,
imaginou-se morando em um castelo, sentado em um trono, com roupas celestes,
banquetes grandiosos e festas de gala. Viu diante de si uma multidão que lhe
admirava e lhe invejava. Seus vizinhos e colegas da escola tentando lhe bajular,
e sendo ignorados e humilhados. Seus pais contando a todos o poder e soberania
do filho. Milhares e milhares beijando seus pés e tentando se aproximar.
Sentiu-se um deus.
Antes
de morder o fruto, sentiu o chão tremer. Abriu os olhos lentamente e sentiu
mais uma vez a terra estremecer. Ouviu as aves revoarem em desespero, os
macacos gritarem assustados, as árvores caírem ao redor. Olhou para o alto e
não acreditou no vira. O gigante havia acordado.
“Dê-me
o fruto. Ele não lhe pertence”, disse o grande Tapuã olhando para Zule. O
menino correu em disparada, não conseguia ver nada diante de si, caiu e
levantou-se, “malditos pés de pato”, pensava enquanto tentava escapar.
O
gigante esmurrou o chão abrindo uma cratera na terra. Zule saltou com o baque.
“Logo agora que conseguira o fruto, iria morrer esmagado por um gigante? Não,
não, precisava sair dali e voltar para a civilização. Precisava ser adorado e
rico”.
Tapuã
levantou sua perna pesando toneladas. Iria esmagar aquele ladrãozinho infeliz.
Zule percebeu quando uma sombra inundou toda a floresta. Debaixo da sola do pé
de Tapuã, só havia escuridão, e Zule estava naquela escuridão. Tentou correr
mais rápido, mas não conseguia. Ouviu e sentiu o vento soprar pela floresta.
Era o pé de Tapuã que descia sobre Zule.
Tudo
tremeu quando o gigante pisou sobre o menino. Tapuã olhou na sola do pé se o
ladrão escapara. Abaixou-se e procurou entre as árvores retorcidas. Havia muito
sangue de animais esmagados. “Certamente estava entre eles”, pensou. Apontou
sua mão para baixo, e como se puxasse algo, esperou até que o fruto dos deuses
flutuasse até ele. Agarrou a esfera de rubis e inalou-a. Fechou os olhos e
voltou a dormir.
A
floresta congelou em silêncio. Olhos assustados focavam no gigante, temendo sua
grandeza. O ar suspenso temia fazer barulho. Tudo ao redor prostrava-se diante
da onipotência de Tapuã. Seu sono deveria ser respeitado.
Não
havia rastros de Zule. Provavelmente, seu corpo fora esmagado e imprensado na
terra. Não tinha chances de sobreviver à pressão entre o peso do gigante e o
chão duro. A não ser que se escondesse no solo.
E
foi assim que Zule escapara. No último minuto, jogou-se em um buraco pequeno no
solo e caiu em um túnel estreito. Uma caverna de tons amarronzados iluminada
por raios solares aconchegou o menino. Na queda, perdera seus pés de pato e os
tentáculos, era um boneco desmembrado.
Não
conseguia se mexer, estava imobilizado. Seu peito palpitava, seu rosto sujo de
lama mostrava uma face de puro horror. Perdera o fruto, e estava numa cova no
meio da Amazônia. Sem mãos, sem pés e preso. Tudo estava perdido. Foi-se a
glória, foi-se a fama e o poder. Chorou e soluçou alto. Perdera outra vez. Era
um fracasso total.
Ouviu
patas caminharem ao redor. Uma formiga tanajura subiu no alto do seu nariz e
disse: “Aqui não é o seu lugar. Saia daqui”.
“Se
eu pudesse ao menos me mexer eu sairia”, ele disse melancólico.
“Onde
estão seus braços e seus pés?”, perguntou a formiga.
“Na
cabeça do gigante”.
“Diga-nos
como chegar lá e traremo-los até você”.
Zule
então lhe contou toda sua jornada, desde o lago ácido até o oráculo mágico.
Pediu que as formigas trouxessem o fruto, mas recebeu um não delas. Disseram
que não pegavam nada que não lhes pertencia.
No
dia seguinte, um batalhão de formigas tanajuras subiram até a cabeça do
gigante. Enquanto que no formigueiro, um segundo batalhão permanecia
trabalhando para reconstruir o estrago que Zule causara, e para estocar
alimentos.
Zule
passou dias observando as formigas. Elas levantavam antes de amanhecer e iam
trabalhar. As mais novas eram desengonçadas no começo, mas com o passar dos
dias adquiriam habilidade e conseguiam fazer o serviço de forma eficaz. Todas
se ajudavam mutuamente. Eram focadas, disciplinadas e nunca desistiam. Quando
uma coluna de barro desmoronava, analisavam aonde tinham errado e depois de
encontrar a falha, reconstruíam da forma correta.
Amorosas,
conversavam umas com as outras, sorriam satisfeitas. Nada lhes faltava, eram
felizes. Não existia uma competição para saber quem era melhor, quem tinha mais
talento, quem era mais veloz. Todas buscavam fazer o seu melhor. Se alguma não
se encaixasse em um determinado labor, eram designadas para outro lugar até se
encaixarem adequadamente. Era encantador observar o trabalho das formigas.
Durante
aqueles dias, ali, no interior da terra, no lugar mais baixo da superfície.
Zule percebeu algo que não estava enxergando. Procurava a grandeza nas alturas
do gigante, mas, encontrara algo mais precioso nos lugares baixos.
Enquanto
isso, na cabeça de Tapuã, as formigas marcharam pelo lago das piranhas, pelas
armadilhas da aranha, e não foram barradas. Chegaram até o salão das máscaras e
cavaram um túnel, libertando todos que estavam ali.
Algumas
semanas depois, Zule alegrou-se quando as tanajuras voltaram ao formigueiro com
braços e pés humanos. Não eram os seus braços ou os seus pés, mas serviriam,
era melhor do que os pés de pato e os tentáculos de molusco.
Imensamente
agradecido pela estadia e ajuda, deixou o formigueiro e seguiu até o abismo que
separava a floresta. Ali, avistou Macabeus deitado em uma rede.
O
índio assustou-se quando olhou para Zule. Não lhe reconheceu. O menino
continuava com um rosto diferente do verdadeiro. Teria que viver para sempre
com uma nova aparência. Pelo menos teria braços e pés humanos.
Conseguiu
voltar à Manaus e pegou um ônibus pra casa. Sentindo-se diferente sabia que sua
vida nunca mais seria a mesma. Algo havia mudado.
Depois
de enfrentar piranhas assassinas, aranhas mutantes e mulheres no espelho.
Depois de ser mutilado, perder sua identidade e mudar sua essência para
conquistar a fama.
Percebeu que poderia encontrar-se no mundo se imitasse as
formigas e trabalhasse arduamente. Se se esforçasse e nunca desistisse. Se
contasse com ajuda de pessoas experientes para lhe auxiliar. Se fosse humilde
como as formigas e trabalhasse em equipe. Se entendesse que o principal não era
ter, mas ser. Ser íntegro, honesto e determinado. Ser consciente e entender que
era único e que não deveria invejar os outros, mas trilhar o seu próprio
caminho.
Zule
não era seu irmão. Não era seus vizinhos. Não era seus colegas de escola ou até
mesmo Erni Gobs.
Zule
era Zule, e ninguém mas era como ele. Mesmo que tivesse outra face ele seria
unicamente Zule.
Fora
recebido por seus pais que inicialmente não o reconheceram. “Você não é o meu
Zule. O meu Zule tem olhos castanhos e nariz achatado”, dizia Maria Inteiro,
mãe de Zule.
“Sou
eu mãe. Com um rosto que não é meu, mas ainda assim sou eu”, ele explicava.
Zule
Inteiro não era mais inteiro. Deixara muitas coisas pelo caminho. Mas,
aprendera que nada se conquista do dia para a noite. “Uma mordida e tudo se
transforma”, não era verdade. Precisava trabalhar arduamente para conquistar o
seu espaço.
Pensando
nisso, trabalhou no que mais amava fazer: contar histórias. Começou na escola,
depois na vizinhança e por último nas praças. Estudou, fez oficinas de
histórias e se profissionalizou. Escreveu um livro de um menino que entrava na
cabeça de um gigante. Fora aplaudido por seu talento. Depois de muito tempo,
Zule já não era mais um fracasso. Dia-após-dia trabalhou para ser grande, e
encontrando a si mesmo, encontrou a glória.
FIM