Sequência cênica do piloto sustenta a sinergia na trama
Recebi um convite inusitado de Paullo Torquato, através de nossa intrépida amiga em comum Cris Ravela, para que eu lesse o terceiro episódio de AfterLife, por um único motivo: “Se o Paullo tinha melhorado ou não a estória”. De início fiquei surpreso com o convite, mesmo porque a série foi criticada mais em pontos negativos do que positivos, considero a atitude do rapaz muito profissional, e um exemplo a ser seguido, porque ao invés de lamentar-se que recebera uma crítica que não esperava, o rapaz buscou aperfeiçoar-se invocando o melhor de si para os episódios posteriores. E vale lembrar que a crítica é uma visão particular minha, e não opinião do mundo. Essa determinação tem que ser sentida pelos demais escritores, pois, quando cremos que estamos fazendo o melhor, é na verdade quando não estamos. Certa feita, eu trabalhei com Torquato na antiga rede WN, rede na qual ele era diretor, ou seja, “puxa-saquismo” não rola conosco aqui no Blog da Zih, a verdade nua e crua é: “Amigos, amigos, séries à parte”. Quero que todos saibam que não precisamos criar estória para provarmos o quanto nós somos bons, porém, quando se trata de “escrever”, significa que não é um processo individualista, e sim mútuo, porque escrevemos para o grande público.
Esse piloto em si me causou certa estranheza com relação ao segundo capítulo, como se ambos episódios fossem escritos por duas pessoas inteiramente “distintas”, tinha até levado essa questão a Cris, no entanto, eu concluí que o que ocasionou essa sensação foi devidamente ao lapso de tempo entre um episódio e outro quando foram escritos pelo autor. Tenho que ser franco, o segundo episódio não chega nem aos pés em consideração deste piloto, e admito, é realmente bom. A começar pela cena inicial e como foi conduzida na apresentação da personagem Brenda Jones vivida por Mandy Moore, a detetive particular incumbida de dar a má notícia a um marido traído, uma tarefa nada fácil para nossa heroína, contudo, ela possui uma experiência significativa com este tipo de situação. Francamente quando eu li o segundo episódio, fiquei entediado, cansado e quase cochilei durante a leitura. Pareceu-me uma série muita fria e distante.
Foi então que li o piloto, e senti que tinha uma boa trama, contudo, nada espetacular. Reli e fiquei maravilhado, as caracterizações, o estilo do texto agradou bastante, o movimento sequencial das cenas, a fluência da trama é impecável. A introdução acaba implicando no roteiro inteiro, é notável como Torquato apresenta sua personagem principal, como ele introduz a premissa dramática, revela a situação dramática, fez lembrar-me da introdução do filme “Chinatown” de Robert Towne, aonde Jack Nicholson justamente vive um detetive particular, e é contratado por um marido traído para descobrir com quem a esposa está tendo um caso amoroso, o detetive Gittes é obrigado abrir o jogo com o homem, assim como Brenda faz no início de AfterLife. Acho importante a comparação com um sucesso de bilheteria, denota que o autor está realmente empenhado e compreendendo o universo da escrita e do roteiro.
O que não me agrada ainda e me insatisfaz muito, são as atitudes de Brenda e de Kevin, ambos não têm iniciativas. Kevin burla não sei quantas “leis” trazendo Brenda a uma cena de crime, na qual ela não deveria estar, porém, eles sempre adiam as investigações, ou seja, se já estão ali que se F**** os demais policiais, ambos têm de cair de cara na investigação, mas, não acontece. Tudo esfria porque Brenda solta uma pérola do tipo: “Você consegue fazer isso agora? Acho melhor voltarmos pra casa, está tarde. Quando você quer começar a investigação?”. E Kevin simplesmente responde: “Eu vou ligar para eles virem. Amanhã eu te ligo e digo o que encontramos com ele. Pode voltar pra casa”. Não tem nada mais intediante do que isso num roteiro. Conclusão, Kevin é um arauto que leva Brenda para fora de seu mundo comum para um mundo especial, apresentando a heroína um problema, uma vez que é lançada a uma aventura, e confrontado um desafio, não pode haver adiamento e permanecer no mundo comum. Ela poderia recusar o caso através de palavras, por medo, exprimindo relutância de alguma coisa do passado ou simplesmente tomar iniciativa em frente às investigações pelo fato da maioria dos detetives serem personagens experientes e calejados.
Na maioria das histórias de detetives, a trama se desenrola quando é pedido para que o detetive aceite um novo caso para investigar e solucionar um crime que perturbou a paz e a ordem das coisas. Como um bom detetive que se preza, ficaria a cargo de Brenda corrigir o erro, além de resolver o crime. Ela acaba indo para uma boate, aonde acontece uma cena com sua a “animiga-veneno” Samantha, fica claro aqui, a relação entre heroína e mentora, e é de um valor simbólico muito vantajoso, deve haver sempre esse encontro entre Brenda e Samantha, porque fortalece o vínculo das personagens. É interessante como Samantha orienta e dá conselhos à vida de Brenda, ou seja, alerta a amiga dos perigos iminentes e ao mesmo tempo enche sua cabeça de dúvidas, ao meu ver pode até mesmo torna-se uma futura traidora.
Somente acho que essa cena aconteceu em um momento inapropriado e de forma errônea na trajetória da estória, porque a passagem não acrescenta nada a trama, para somente depois Brenda voltar ao seu escritório, e descobrir “algo intrigante” nos arquivos deixado por Kevin sobre sua mesa, algo que de fato não sabemos o que é, e o que impulsiona Brenda voltar à cena do crime, é um artifício usado na trama, todavia, não fica claro para o leitor. Torço e espero que futuramente esse quadro mude de figura, tanto com relação a Brenda como ao Kevin. Não sei se todos há de concordar comigo, na minha visão, um roteiro é realmente como se fosse um sistema, digamos que consiste de uma série de elementos que possamos identificar como um sistema, atados de partes “específicas” e unificadas pela ação somada a personagens, igual à premissa e tramas. Particularmente afirmo com afinco que a “seqüência” de uma estória é um dos elementos "chave" mais importante do plano de um roteiro, se não "o elemento". E sem dúvidas, ela é o alicerce da construção da trama, porque mantém tudo amarrado e no eixo. E sabemos que a seqüência é uma série de cenas ligadas por único propósito de ideia, com começo, meio e fim.
Quero expandir essa ideia por aqui, e ressaltar quão genial e hábil Torquato foi ao desenvolver uma seqüência imbatível no decorrer da trama, falo da sequência, a qual intitulei de: “Construindo Uma Médium”, que começa a partir do momento em que Brenda retorna a cena do crime, e é assediada por uma gangue e perseguida por eles. A fuga vertiginosa leva ao atropelamento da nossa heroína. Brenda vivencia o fenômeno “EQM” (Experiência de quase-morte), para quem não conhece, trata-se de sensações geralmente ligadas a situações de morte iminente por hipóxia cerebral, ou associadas a paradas cardiorrespiratórias, onde acontece o famoso e conhecido “efeito túnel” da experiência fora-do-corpo, ou Vida Depois da Vida como sugere o autor na proposta da estória. Sem perder o foco dessa vez, Torquato coloca Brenda em um novo universo, uma voz misteriosa, e pertencente a uma entidade espiritual conversa com ela, e diz que ambos já se conhecem, mas, não sabe se Brenda lembrará dele.
Os diálogos causam um certo suspense no ar e futuramente contribuirá no desenrolar do enredo da série. Brenda recebe uma segunda chance da entidade, e fica claro que nunca mais será a mesma. Num efeito digital a cena é invadida por uma luz branca incandescente que vai aumentando até tudo ficar branco. Seguimos para cena adiante, na qual Brenda sofre o processo clínico de ressuscitação por hábeis médicos. Para alegria de todos, é claro, Brenda vive. No hospital Brenda recebe a visita do preocupado amigo Kevin, porém, o que realmente me impressiona e deixa felicíssimo, é a forma como é apresentada a personagem Megan (Mackenzie Foy), os diálogos entre Brenda e ela fluem normalmente, e Megan solta frases de efeitos como: “Você não tem o direito de estar viva”, e sem dúvida a melhor foi: “Eu vou queimar seus olhos quando você estiver dormindo”, frases com um teor de filme de terror, que poderiam até mesmo tornar-se bordões da personagem.
O espírito diabólico, ou perturbado de Megan desaparece, e é até comum Brenda pensar que foi do tipo um pesadelo, ainda mais depois do acidente e de alguns coquetéis hospitalares. Enfim, a sequência impecável conclui seu desfecho quando Brenda deixa o hospital, e é ajudada por uma enfermeira e levada de carro por Kevin. É aonde eu queria chegar, está aí, início, meio e fim, tudo conectado por uma ideia: “Construindo Uma Médium”. A nova condição de Brenda, isso pode tornar-se um fator favorável de explorar durante a série, sua aceitação, ou não, dom ou maldição, gerando constante conflito interno da personagem, a qual “mundo” ela pertence agora, dos mortos, ou dos vivos. Estou rezando para que Megan apareça mais vezes, quer dizer, não para mim, mas, na série. Toda vez em que ela aparecia, surgia no meu rosto um sorriso de orelha a orelha. A cena na qual ela faz a bandeja com café da manhã se espatifar na parede, é esplendida, evidente que Megan não poderia passar batida, sem ameaçar Brenda e pronunciar uma de suas frases doentias: “Avise para o desgraçado daquele seu namorado para deixar os fósforos à vista da próxima vez que for dormir com você aqui”.
No meio do piloto, Brenda toma uma atitude ao confrontar Kevin, com relação ao rapaz que foi morto, e que o caso foi dado por encerrado. Fiquei muito feliz e surpreso com a conduta da personagem, Brenda diz: “Temos uma coisa mais importante pra fazer”. Kevin diz: ”O que é mais importante que a sua vida?”. Ela interpela: “Você não entenderia. Eu preciso dos arquivos que você encontrar na polícia envolvendo o bairro daquele garoto”. Kevin insiste: “O caso já foi fechado, Brenda. Por que você insiste tanto nessa história?”. E Brenda define a conversa: “Vocês cometeram um engano, não foi a ex-namorada dele que o matou”. Era isso que não aconteceu no começo, através de palavras ressaltamos quão são ou não corajosos e destemidos os nossos personagens. Evidentemente quando conhecemos nossos personagens, os diálogos fluem facilmente e a estória se desdobra e toma forma. O que reafirma o que estou falando é a cena que acontece na casa de café, entre Brenda e a irmã Jessica (Naomi Watts – Mulherão), escritores, notem e aprendam com Torquato, pois, há uma sinergia muito forte nos diálogos de ambas, e o importante que não soa forçado.
Enfim, desta vez a estória tem um desfecho satisfatório e uma solução conclusiva ao caso do garoto morto, o que me agradou muito, também seria a solução que eu tomaria no rumo da estória, e não faria diferente. Somente o fato de revelar quem era realmente o espírito Megan, eu senti que não foi muito inspirador, pois, eu jurava que a personagem fosse um “ser-secular”, contudo, não era. A última cena deixa na estória um “gancho” magnífico para ser explorado em outros episódios, ou viável para tornar-se a mitologia do programa. No mais, uma estória intrigante e surpreendente, com seus furos, amarras, erros e acertos. Tudo isso vai consolidar com constantes exercícios de escrita e leituras obrigatórias de outros roteiros, até mesmo de devorar livros. Jogando no ventilador de 0 a 10, o piloto recebe 9, por não ter dado mais iniciativa, as personagens Brenda e Kevin. Estamos no aguardo do terceiro episódio.
Coluna “Jogando no Ventilador”