Como Nossos Pais | Clássico de Elis Regina sofre problemas de roteiro em minissérie

Cristina Ravela
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Apesar de linda homenagem à música, minissérie de Samuel Santos derrapa em problemas de escritura e roteiro.

A minissérie Como Nossos Pais, de Samuel Santos, exibida pela emissora Séries de Web, estreou e terminou em 2017. A trama leva o leitor à década de 60, em plena ditadura militar, contando o drama de quem viveu aquela época e sofreu por discordar do regime. Segue a sinopse:


1965. Em plena ditadura militar, o jovem Reynaldo é adepto da comunidade revolucionária, ignorando os conselhos dados por seu pai, o General Donato e por sua mãe, a bondosa, Dinorah.
Reynaldo teve que passar por maus-bocados para se lembrar dos ditos de seus pais e cair em si. Anos se passam e chegamos enfim, em 1985 e agora, ele passará pela mesma situação que seu pai passara, com seu filho, Leonardo que se envolverá com o tráfico de drogas, gerando em si, uma incógnita e firmando que pode passar o tempo que for, mas que um dia viveremos como um dia nossos pais viveram.
Se quer mesmo saber o que achei da minissérie Como Nossos Pais, respira fundo e vem comigo, porque a sexta é santa, mas o blog não!


Pontos positivos de Como Nossos Pais

Primeiramente, quero dizer que a estória, de certa forma, foi bonita, ainda mais com alguns trechos da música permeando diálogos, como esse aqui:
"Reynaldo: Não quero lhe falar, meu grande amor, das coisas que aprendi nos discos, tampouco do que vivi, afinal, tudo foi um simples devaneio de minha alma".
No geral, a trama mostrou exatamente como na música composta por Belchior e conhecida na voz de Elis Regina: vivemos como nossos pais viveram. Reclamamos de suas atitudes, mas fazemos tudo exatamente igual.

Reynaldo era um revolucionário querendo lutar contra a ditadura e contra um pai general opressor. Foi preso, torturado e vítima de estupro (pelo o que entendi) por parte de outro general. Acabou se apaixonando por uma professora, Heloísa, filha de um médico desprezível que lucrava com as mortes das vítimas. Reynaldo e Heloísa casaram, tiveram um filho, Leonardo, e viveram, anos depois, a angústia de ter um filho viciado. A estória se repetia e, agora, era a vez do protagonista agir como seu pai, expulsando seu filho de casa.

A ditadura mostrada na trama se destacou, pude sentir os soldados tocando terror nas ruas; o medo na cara dos jovens; a situação crítica no país. Porém, uma estória com esse plot, em apenas 5 capítulos, não foi suficiente para compor um drama desse calibre.

Pontos negativos de Como Nossos Pais

Problemas de roteiro (dramatização, diálogos forçados, transformação súbita dos personagens) e problemas de escritura (verbos no passado e narrativas importantes sendo narradas superficialmente) marcaram presença na minissérie. Vamos lá!

Ações narradas superficialmente

Para a minha alegria (Deus que me free na vida real), a trama iniciou com tiro, porrada e bomba. Eram os soldados metendo o pipoco em qualquer um que passava pela Avenida Brasil. O que me chamou atenção é que, além da cena ter sido corrida, sem preparo psicológico, tudo no mesmo parágrafo (não repitam isso, crianços), os soldados atiravam para tudo que era lado, sem se importarem "com a cor, com a raça, com a classe social ou com a situação financeira" das pessoas.

Devo estar bem desatualizada sobre o que aconteceu na época da ditadura - ou talvez a ficção permita essa licença poética -, mas acho que a ditadura tinha preferência por determinada classe e cor, não?



Sobre a narrativa ter sido rápida, creio que a culpa tenha sido do uso exagerado da vírgula. Observe esse trecho:

"As crianças e Heloísa se abaixam, enquanto, muitas pessoas corriam e gritavam intensamente, a sirene da polícia se ouve e um ruído ensurdecedor esmorece à todos ali, eram os revolucionários que arrombaram o portão da escola, ocasionando numa grande movimentação, os soldados atiravam abruptamente, com medo de seus últimos alunos serem atingidos por eles, Heloísa se arrisca, entrando na manifestação agarrada aos meninos, levando-os para fora, um tiro atinge a perna do pequeno Lucas, ela coloca-o no colo e segue correndo ao lado dos outros, o carro de Donato passava na hora, Heloísa se põe na frente dele e Donato é obrigado à parar o veículo".



A vírgula faz parecer que os soldados estavam com medo, não Heloísa. Uma cena importante, narrada às pressas, de forma superficial. Isso é um grave problema de escritura em um roteiro.

Excesso ou falta de termos técnicos

Se o excesso daqueles termos (corta para, câmera, vemos, ouvimos e todos os outros movimentos da câmera) torna a leitura cansativa, a ausência pode ser um problema também.

"A cena escurece". Ok, mas já que usou esse termo, que tal um "a tela clareia' ou "Fade In" no início da cena? Em um roteiro, quando você inicia um Fade In, você precisa, em algum momento, fechar com "Fade Out" ou "a tela escurece" ou "Fade To Black" (usado para fechar total a tela, comum em cenas de grande suspense). Faz parte da harmonia de um roteiro. Entretanto, não tiro ponto por conta disso.


Excesso de elementos de um roteiro

"A câmera foca em um casal de meia-idade jantando, o único ruído que se ouvia era o dos talheres que levava o alimento à boca de ambos, cansado do silêncio, o anfitrião toma frente e inicia um dito".

Observe que detalhes tão pequenos só na música de Roberto Carlos. Ora, se o casal está jantando e o único ruído vem dos talheres, supõe-se, então, que eles estão usando os talheres. Ou não?



Outro ponto importante é aquela vírgula antecedendo "cansado do silêncio". Eu colocaria um ponto final alí e surtaria: "A câmera foca em um casal de meia-idade jantando, e o único ruído que se ouvia era o dos talheres. Cansado do silêncio, o anfitrião joga o talher com força ao prato. Dinorah se assusta".

Desculpe o autor, mas não posso ver uma oportunidade de meter o louco em uma cena, que eu já começo a imaginar o personagem surtando.

Lembre-se: roteiro é a imagem escrita, mas nem tudo deve ser detalhado. Se alguém está bebendo uma vodka, óbvio que levou o copo à boca. A cena, entretanto, só deve ser detalhada, se no momento que o personagem estiver levando o copo à boca, um tiro quebrar o copo. Ou seja, não valorize tanto cenas corriqueiras, a menos que elas deixem de ser corriqueiras.

Diálogos forçados ou inadequados

Diálogos no primeiro capítulo me deixaram com a sensação de século 19:

  • "E porque não retrucastes contra essa decisão?";
  • "Sou um homem íntegro e não podes desprezar-me";
  • "Quem causaste esse silêncio foi tu mesmo, afinal, não tenho nada à professar à um ser tão desprezível como você".




Esses foram apenas alguns. A língua portuguesa é primorosa, mas é preciso ter cuidado com esses diálogos rebuscados, oriundos de outro século...

Problemas de escrita

Excesso de vírgulas ou falta delas; crase no lugar errado; erros de digitação (derriba = derruba) ou confundir "difundir" com "dizimar". Erros comuns, mas que uma boa revisão teria resolvido. Pelo menos evitado a maioria.

Além disso, me deparei com verbos no passado: "Reynaldo caminhava pela calçada e se deparava com o sangue derramado pela avenida". Bonito, né? Em uma literatura então...




Outro ponto que preciso destacar: a transformação súbita do personagem. Isso ocorre quando ele faz coisas que deveriam levar algum tempo, seja para aceitar que está errado e fazer o certo, seja para tomar uma decisão que mudará toda a sua trajetória.

Nesse caso, o absurdo ficou por conta do pedido de casamento de Reynaldo a Heloísa, sendo que mal se conheciam. Reynaldo a beijou, e o pai sanguinário da garota (médico que adora um massacre para faturar) ordenou o casamento para não ter uma filha desonrada. Acredito que havia maneiras de tornar a cena menos inverossímil.

O que você aprende com a minissérie?

Eu ia dizer que você precisa planejar muito bem a sua trama, fazer o argumento, organizar ideias e publicar com ela toda pronta. Aí, eu me lembrei que nunca publico uma trama tendo ela pronta. Planejo, organizo e, quando vejo, já estou estreando.


Não façam isso se você não tiver domínio sobre o enredo que quer escrever, nem sobre a época que deseja retratar. 

Como Nossos Pais tem ótimo plot, tem carisma, e fico feliz que um autor jovem dê essa importância às boas músicas e, principalmente, à história do Brasil. Só que escrever uma estória desse porte requer um pouco de domínio de roteiro. 

Roteiro não se aprende em um dia, e ninguém sabe de tudo. Devemos sempre reler, reaprender e pôr em prática nossos conhecimentos, mesmo errando de novo. Espero que as próximas produções do autor mantenham o bom plot e o carisma, mas que venham alinhados a uma boa roteirização.

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