Conto I: A menina e o Jardineiro
Sobre a obra: A antologia "Era Uma Vez" nasceu de um desejo em contar histórias simples, mas que pudessem ser deslumbrantes.
Onde as possibilidades fossem infinitas e as aventuras fantásticas. Um anseio do autor em viajar e fugir um pouco da triste realidade que se vive no país.
Essas histórias não são meios de escape ou uma forma de ignorar os problemas, mas um modo de resinificar os medos, os traumas e os monstros internos que nos assolam.
Era uma vez é um convite à imaginação. Para dar asas à imaginação. É mais uma maneira de sonhar e manter os pés no chão, mas nunca deixar de sonhar. Sejam bem-vindos à Antologia Era Uma Vez.
Índice:
I - A Menina e o Jardineiro
II - Mundo Perdido
III - Na cabeça do Gigante
IV - O Grande Vilão
A Menina e o Jardineiro
Era uma vez uma
mansão no topo da colina, onde morava a doce e bela Selena. A jovem de olhos
azuis e longos cabelos vermelhos.
Ela passava as
manhãs e as tardes cuidando do jardim nos fundos da mansão. Delicada e amorosa conversava
com as flores. Sua presença irradiava paz entre todos, os olhos brilhavam de
inocência, era um amanhecer que espantava o frio da noite.
Não morava
sozinha. Na mesma mansão, compartilhava o espaço com sua irmã mais velha, e com
o cunhado carrasco, César Augusto; sentia medo dele.
César tinha olhos
maldosos, voz áspera e rosto sombrio. Certa noite, ela flagrou lhe mexendo em
suas roupas, não sabia o que ele queria, só sentia que não podia confiar nele.
No início da primavera
os brotos floresceram, o jardim pulsava um arco-íris de cores e as rosas
vermelhas, brancas e amarelas eram abundantes. Orquídeas roxas enalteciam o
lugar. Ali era um paraíso sereno, um frescor que refrigerava a alma.
César Augusto
logo contratou um jardineiro. Um moleque esguio, loiro e de olhos vivos, seu
nome era Argos.
Em seus dezessete
anos, Argos nunca havia saído da cidade. Trabalhador, sempre ajudara seus pais
nos serviços do campo. Agora, cuidava dos jardins da cidade. Tinha mão boa pra lidar
com flores. Era sensível e apaixonado pela natureza.
Argos e Selena
tinham a mesma idade e, logo tornaram-se amigos. Aguavam o jardim juntos, adubavam
a terra, plantavam sementes de girassóis, colhiam as rosas vermelhas.
Todas as manhãs, ela
aguardava o jardineiro subir a colina em sua carroça, para em seguida lhe
servir café e bolo. Adorava vê-lo comer. Algo brotava em seu coração. Um
sentimento tão puro que não podia explicar.
Da mesma forma,
Argos ia dormir ansioso, aguardando eufórico o amanhecer. Despertar era uma
alegria, e saber que veria a jovem, motivo de muita felicidade. Nunca havia
experimentado algo parecido.
O desejo de estar perto, de fazê-la sorrir, de
esbarrar em sua mão ao devolver a xícara, ou talvez segurá-la por alguns
instantes. Sentia um fogo arder em seu peito, uma chama que aquecia a alma, e
acendia quando a encontrava.
Mas, em uma noite
de pesar, a irmã de Selena morrera. A jovem chorou durante dias, estava sozinha
no mundo, sem mãe, pai e sua única irmã. Sentia-se abandonada pela vida, no
frio de uma mansão deserta.
Morar com César
Augusto, seu tutor, era um tormento. Ele lhe proibira de ir ao jardim.
Dissera-lhe que sua única função era ser dona de casa e mordoma do lar. Aqueles
foram dias de trevas. As horas custavam a passar. Selena sentia-se prisioneira
dentro da casa. “Como sair dessa situação?”, pensava. “Será que viverei para
sempre cativa nesse lugar?”.
Mas, numa manhã
ensolarada, Argos trouxe uma escada, e subira até a janela da jovem. Ela sorriu
ao lhe ver. Seu herói havia chegado. Estaria livre daquela prisão. Livre de
César Augusto.
Os dois correram
para o jardim. Argos lhe abraçou com todo amor que podia, e ela beijou-lhe as
mãos. Trocaram olhares apaixonados. Ele colheu uma rosa e entregou-lhe. Havia
destilado seu amor naquela flor. Sentiam-se unidos, amantes, amados.
O espinho da rosa
espetou o dedo de Selena, derramando uma gota de sangue sobre a pétala. Argos
carinhosamente beijou-lhe o dedo.
Do interior da
mansão, um brado terrível ecoou. César Augusto procurava Selena. “Onde está a garota?”,
rugia para os criados.
“Esconda-se. Vou
distraí-lo”, disse Argos para a amada.
Mas, ela não se
sentia bem, uma tontura lhe tomava por completo. Logo após a saída dele,
desmaiou no meio das flores. As pétalas das rosas caiam-lhe por cima. As raízes
se entrelaçavam por suas pernas e braços. Um manto de flores cobria-lhe, e seu
corpo fora puxado pela terra. Do interior das raízes, entre minhocas e grãos,
levantou-se uma rosa exuberante, ainda inexistente, com pétalas vibrantes, e cores
pulsantes, numa bela e mágica imagem. Selena transformara-se em rosa.
Infelizmente,
César Augusto a encontrara. Percebendo sua beleza, tratou de escondê-la no
quarto, num vaso de porcelana.
Argos fora
expulso da mansão. Não poderia mais se aproximar do lugar. Sem saber do
paradeiro de Selena, ainda juntou forças para tentar encontra-la, porém, sem
sucesso.
Acabou-se a
primavera. Chegou o verão. As estações passavam uma atrás da outra, e Selena
permanecia presa no quarto de César Augusto, que contemplava a flor com
obsessão, em um olhar frio de apatia.
Com o passar do
tempo, a rosa não murchava. Suas cores vibravam, e no inverno, uma chama azul
lhe envolvia, protegendo-lhe. Selena estava viva através da flor.
Ainda era
inverno, quando em uma noite gelada, a raiz da rosa começou a se mexer. Durante
a madrugada, cresceu extraordinariamente e alongando-se cruzou o quarto de
César Augusto. Passou por debaixo das portas e saiu da mansão. Única e
determinada; percorreu todo o monte, descendo até o vale. Cruzando bosques
selvagens, riachos profundos e muros de pedra. Chegou à vila de agricultores,
na última casa da rua, feita de madeira simples e rústica.
A raiz escalou as
paredes até chegar à janela do jovem Argos. Ultrapassou a passagem de vidro na
janela e correu até à cama, onde o jardineiro dormia. Com um só espinho, espetou-lhe
o indicador lhe acordando de imediato.
Argos fora
surpreendido pela raiz em sua cama, e ainda em choque não reagira.
Simplesmente, observou enroscar lhe o dedo, e aproximá-lo da boca. Não entendia
aquilo. “Por que a raiz segurava-lhe o dedo, com uma gota de sangue?”, pensava.
Mesmo assim, permitiu tudo isso, e logo, entendeu o recado. “Era Selena, minha
doce amada”, pensou sorrindo.
Levantou-se
rapidamente e correu até à mansão. A raiz lhe ajudou a abrir as portas, e lhe
introduziu no corredor, diante do quarto de César Augusto. Era ali que estava
presa. Só podia ser.
Com prudência, o
jardineiro entrou na masmorra e resgatou a rosa. Carregou o vaso com
reverência, como se fosse uma parte do seu coração. Em suas mãos, a rosa
brilhou. Parecia saber que seu amor lhe segurava.
Mas, o amor não foi
muito longe. César Augusto, acordou e agarrou o jardineiro por trás, lhe derrubando
no assoalho frio. Argos tentava lutar, mas o carrasco era forte e estrangulava
o moço. A rosa testemunhava tudo, sem poder fazer nada. Suas pétalas murchavam
ao ver seu amado morrer nas mãos do cunhado.
O crápula
carregou o corpo do jovem até o jardim. Iria enterrá-lo ali mesmo. Antes,
precisava cortar a raiz da flor. Não queria que ela aprontasse novamente.
O corpo de Argos
jazia morto, entre os galhos secos da roseira. Não havia pétalas para lhe
cobrir, não existia rosas para lhe aquecer. Apenas algumas borboletas que se
aproximavam, bailando com o vento.
Uma, duas, dez, elas pousavam sobre o
jardineiro, cobrindo-lhe por inteiro. A terra lhe sugou por completo, e do pó
da existência, surgiu uma borboleta exuberante, com asas vermelhas em brasa, que
soltavam flashes de luz ao bater.
César Augusto não
encontrou o corpo do jovem. “Quem o tivesse escondido, havia feito um favor”,
pensava. Agora, seu único intento era manter a rosa prisioneira, com as raízes
presas com fios de prata. Nunca mais ela sairia daquele quarto. Cativa para
sempre.
Mas, a borboleta
vermelha voou até a janela do cativeiro, e encontrando uma brecha, conseguiu
entrar. Pousou em uma das pétalas, e a rosa, percebeu sua presença. Uma dança
romântica de cores começava.
A borboleta vibrava um vermelho vivo, enquanto a
rosa emitia um azul cintilante. As cores se abraçavam no ar dançando uma valsa.
A rosa logo despertou seus estames, pequenas hastes que saiam do interior. E no
topo dos estames, abriu as anteras, liberando seu pólen.
Com a delicadeza
de uma canção, a borboleta pousou lentamente sobre as anteras, recolhendo os
pólens. Um beijo sensível e cheio de amor acontecia. O toque suave do
jardineiro sobre a rosa. A troca de calor e vida. Tudo transpirava sentimento e
paixão. Uma celebração à união dos amantes.
Ao sair do
quarto, a borboleta voou até o jardim e espalhou o pólen sobre outras flores.
Agora, precisava aguardar a primavera e testemunhar o milagre.
Aqueles não foram
dias fáceis. O jardim estava abandonado. A roseira não florescia. Mas, como um
ato divino, várias borboletas começaram a sobrevoar o jardim. Vinham
acompanhadas de abelhas e beija-flores. Traziam água em seus bicos e asas.
Faziam a esperança nascer de novo.
E, logo chegou a
primavera. As flores desabrocharam cintilantes, de várias cores. E, no meio do
jardim, uma dezena de rosas mágicas, destoava do restante. Tinham pétalas
aveludadas pulsando uma aura mística.
Quando a noite
chegou, as rosas mágicas alongaram suas raízes até o quarto de César Augusto.
Como um exército, marcharam até a cama do crápula e lhe amarraram por completo,
sufocando lhe em seguida.
Logo após,
libertaram a rosa Selena e lhe carregaram até ao jardim. Ali, no meio das
flores, ela que estava quase morta, ganhou vida. Pela manhã, quando o sol aqueceu o jardim, foi sugada novamente ao
interior da terra, mas em seguida o corpo frio de menina saltou da terra. A
garota abriu os olhos, espantada. Parecia-lhe que tinha vivido um sonho, mas
sabia que era real.
Na mansão,
encontrou seu cunhado morto, em cima da cama. Voltou ao jardim e aguardou a
borboleta vermelha, que logo pousou em seu ombro. Em seguida, parecia ouvir algum
segredo vindo da borboleta, um mistério que somente o jardineiro sabia.
E foi assim que
encontrou o corpo do amado, enterrado entre as rosas. Beijou-lhe as mãos e os
lábios frios, mas ele continuou dormindo o sono da morte.
Naquele mesmo
dia, percebeu que não conseguia sentir o cheiro das flores. Tentou sentir o
aroma em outros jardins, mas sem sucesso. Durantes anos, vários jardineiros
vieram cuidar das roseiras. Um após outro, e ela buscava sentir o aroma de
alguma flor. De todos os cheiros que existiam no mundo, o único inodoro era o
perfume das rosas. Aquilo lhe entristecia.
Quando a
primavera retornou, um novo jardineiro fora contratado. Um homem distinto, de
face serena, com porte de cavalheiro. Que segurava as flores com cuidado.
Cheiravas as pétalas com paixão. E, fez florescer o jardim.
Numa manhã feliz,
Selena acompanhou o jardineiro. Agora, uma jovem senhora, ela observava o homem
guiar-lhe o caminho, enquanto pousava a mão sobre o braço dele.
Alexandre
passeava com Selena entre os lírios, e recebia os raios de sol daquela manhã.
Os dois sorriram com a afinidade. Foram ao jardim e ele colheu uma rosa, entregando-lhe.
“Sinta o aroma”, ele disse. “Impossível”, ela pensou. Mesmo assim, aproximou a
rosa de si e aspirou o doce perfume da flor. Agora podia sentir novamente. Uma
flor brotava em seu coração. O amor renascia sereno, singelo e sublime.
Selena celebrou o
amor com Alexandre. Juntos, fizeram uma estufa repleta de rosas, orquídeas e
lírios do campo. Todas as manhãs borboletas visitavam o lugar, e nas
primaveras, uma borboleta vermelha aparecia pousando entre as flores. Selena
observava o inseto, e meditava agradecida por um dia ter sido amada.
Entre as
estações, as rosas cresciam e morriam. Renasciam novamente e eram polinizadas
pelo vento, as abelhas e as borboletas. Borboletas vermelhas que traziam vida e
paz.
fim